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Ivaniza Leite e o Cajá de resistência

Acompanhe a primeira reportagem especial da série "Mulheres em Movimento" que nesta sexta-feira (07) conta a história de Ivaniza Leite, do Quilombo Cajá dos Negros, em Batalha (AL)

07/05/2021 às 17h57

Do município de Batalha, no Agreste de Alagoas, um território respira resistência. A Comunidade Quilombola Cajá dos Negros, localizada há 180 km de Maceió, vive até hoje uma história de lutas e conquistas, numa força que atravessa gerações.

A comunidade reconhecida há 15 anos como Quilombo é marcada também pelo sonho de homens, mulheres, jovens e crianças que ainda persistem coletivamente para que seus direitos sejam garantidos plenamente.

É na comunidade que conhecemos a Associação de Desenvolvimento Comunitário Remanescentes de Quilombolas de Cajá dos Negros e sua presidenta, Ivaniza Leite. Aos 54 anos de idade, Ivaniza conta com orgulho sua trajetória e a história do Cajá dos Negros.

“Hoje me enxergo como uma mulher empoderada. Uma mulher que contribui com outras mulheres”, comentou. Ela que nasceu na comunidade, não consegue pensar a vida do Quilombo Cajá dos Negros sem pensar nas lutas que atravessaram as gerações do território.

A sua história de vida pessoal é também a história de vida das conquistas e da resistência coletiva do Cajá dos Negros. Desde que atua na Associação Comunitária Ivaniza dedica parte da sua vida para a organização da comunidade em busca de melhorias para as 86 famílias que vivem até hoje no Quilombo.

Desde sua juventude Ivaniza esteve envolvida nas demandas da comunidade e foi também por isso que foi estimulada a cursar o Magistério. Na época, seus estudos foram pagos graças à campanha realizada pela sua mãe para garantir a formação. “Chegaram a perguntar para mim o que eu queria ser e eu dizia: quero ser professora”, lembra.

“Sempre apostaram nos meus estudos para que eu pudesse contribuir com o desenvolvimento da comunidade e esse talvez seja um dos melhores períodos que marcam a minha vida, pois me fez tornar a mulher que sou hoje”.

A partir de então a vida de Ivaniza era transformada. Cada vez mais envolvida com as questões da comunidade, ela foi se constituindo como uma verdadeira liderança no território e hoje continua a luta dos seus ancestrais com muito orgulho.

“Nossa comunidade está hoje como está graças a nossa luta. Não foi candidato ou qualquer outra pessoa. Cajá está hoje como está pela nossa luta e pela luta dos que já se foram”, ressaltou Ivaniza.

Mesmo desencorajada e sem apoio em várias situações, Ivaniza lembra ainda dos episódios de racismo que viveu, mas que não intimidaram sua coragem e disposição para a luta. “Há aproximadamente uns 30 anos atrás nossa relação era muito difícil. Sempre que íamos para a cidade éramos motivo de discriminação”.

Segundo Ivaniza, era comum ouvirem ataques racistas direcionados às pessoas do Quilombo quando precisavam ir até o centro de Batalha, mas que hoje essas situações têm diminuído, graças à luta e a organização da comunidade. “Hoje a partir da nossa atuação recebemos elogios em todos os lugares. E isso é também uma conquista, conquista de respeito e de reconhecimento à nossa história”.

É sobre o reconhecimento pela história da comunidade que Ivaniza ainda lembra do papel dos e das jovens no território também com muito entusiasmo. “A juventude tem fortalecido um bonito processo de aceitação e de ajuda entre eles. É um grupo de jovens bem unidos, que é também uma conquista da comunidade. Qualquer coisa que ocorre na comunidade a juventude está envolvida. Tudo sempre feito por nós, pela nossa organização e pela nossa força de vontade”.

A história que atravessa gerações

A formação do Quilombo Cajá dos Negros é uma verdadeira riqueza histórica preservada de geração para geração. Numa roda ouvimos relatos cheios de detalhes da trajetória histórica da comunidade que, desde o século dezenove é contada e recontada a partir da oralidade que mantém a memória do Quilombo viva e em movimento. “Vou logo dizendo que é uma história complicada”, anunciava Ivaniza.

A história que dá origem a constituição do Cajá dos Negros tem início com Antônio Leite, vindo da África para ser escravizado no Brasil. Aqui trabalhou no engenho de algodão, mas conseguiu fugir da escravidão.

Na sua fuga, passou cerca de quinze dias comendo umbu cajá, fruta que nasce do umbuzeiro através do cruzamento entre o umbu e o cajá. Foi ainda na fuga que encontrou Maria Rosa, uma negra que, possivelmente estava também fugindo da escravidão.

Juntos, Antônio Leite e Maria Rosa casaram na beira de um riacho e tiveram 9 filhos, o primeiro núcleo da comunidade que viria a se chamar Cajá dos Negros, em homenagem ao fruto que alimentou Antônio Leite e o manteve vivo em sua fuga para a liberdade.

“Contam que a festa foi um samba para comemorar a vida e agradecer ao pé de Umbu Cajá”, disse Ivaniza, que carrega o Leite no sobrenome com orgulho.

Até hoje a comunidade preserva com cuidado o pé de Umbu Cajá. Muito provavelmente não seja o mesmo pé que salvou Antônio Leite, mas os moradores não sabem há quanto tempo a árvore existe e resiste ali, no centro do Quilombo.

A luta pela terra

Após o período de constituição da comunidade, Ivaniza nos conta que a terra virou uma grande disputa. Aos poucos as famílias foram perdendo parte de suas terras para os fazendeiros que iam tomando posse da área na época. “O resultado é que hoje somos 86 famílias que vivemos principalmente do trabalho com a terra, mas que continuamos trabalhando na terra dos outros, recebendo uma diária de 50 ou 60 reais”.

Além das 86 famílias que vivem hoje no Cajá dos Negros, outras 15 foram assentadas pelo Governo do Estado de Alagoas através do Programa de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural em 2007.

“A comunidade está lutando há anos pela titulação das terras para as famílias do Cajá dos Negros, já fomos ameaçados por fazendeiros e chegamos até a ficar sob proteção federal”, destacou Ivaniza.

“Com a paralisação dos processos de titulação para as terras quilombolas no atual governo, nosso processo não avançou no último período. Se a gente adquirir essa terra de volta, tudo muda na nossa vida”.

A luta pelo acesso a outros direitos que também continuam mobilizando Ivaniza e toda a comunidade. Resultados da conquista e da luta do Cajá, hoje o território já possui, além da sede da Associação, uma escola, um posto de saúde e uma quadra de esporte. Uma das demandas da comunidade é a inclusão de profissionais do próprio Cajá dos Negros para trabalhar no atendimento à população do Quilombo.

“Hoje eu integro alguns Conselhos Municipais, como exemplo o de saúde, e é a partir da ocupação desse espaço que também pautamos nossas demandas para a comunidade”, refletiu.

Ivaniza destacou ainda a ausência de políticas públicas direcionadas ao público quilombola pelo município. “Não temos nenhuma ação da prefeitura desenvolvida diretamente para a comunidade”.

As famílias do Quilombo, por exemplo, só têm acesso ao CRAS que fica localizado na cidade e não possuem nenhuma ação direta da politica de Assistência Social no cotidiano da comunidade.

“Tudo que a gente precisa nesse sentido, acaba sendo feito por nós mesmos, passando de casa em casa, pela nossa própria vontade”.

As Dandaras

Também como parte da história de luta e de memória da comunidade, a dança está presente atravessando gerações. O grupo de dança afro “As Dandaras” em sua nova formação, reúne diversas jovens do Cajá dos Negros para a dança como possibilidade de também contar suas histórias.

“Eu vejo na dança uma forma de expressar a nossa ancestralidade, a música acaba falando em nosso corpo e dançando a gente também conhece a nossa história”, compartilhou Wyndjna Rikelly, que compõe o corpo de dançarinas do Grupo As Dandaras.

Os ensaios ocorrem quinzenalmente, onde as meninas já organizam um espetáculo de dança para apresentar dentro e fora do Quilombo.

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